Acordou quando era cedo. Geralmente acontecia isso. Cinco ou seis horas da manhã já estava de pé. Não que ele queria aquilo, mas passar muito tempo deitado na cama lhe causava dor-de-cabeça, e ainda por cima tinha seus remédios para tomar. Remédios dos quais nunca mais estaria livre até que a morte o agarrasse pelo tornozelo.
Fez seus próprios ovos mexidos, alimentou o gato, procrastinou juntar o lixo da cozinha e abriu um pouco da cortina para deixar a luz do Sol, que já nascia, entrar um pouco para dentro da sala que cheirava a mofo. Não gostava de deixar muita luz entrar, reclamava sempre à Michel, seu filho, que seus olhos já não se davam muito bem com a luz do dia e nem com qualquer outra. Michel sempre reclamava, mas, por outro lado, nem sempre estava lá para ver a rotina do pai.
Quando colocou o gato para fora de casa naquela manhã sentou-se na poltrona e pensou em ler um livro, mas tinha medo de acabar pegando no sono, então preferiu não ler nada. Colocou uma música baixa para ouvir. Qualquer música que não ultrapassasse o limite de seus tímpanos que já não funcionavam tão bem. E essa era sua rotina desde que Margarida se fora. Já tinha três anos desde que ele e seus três filhos, Michel, o mais velho, Berenice, a do meio e Rafael, o mais jovem, enterraram-na numa cerimônia apática e quase sem emoção que pudessem demonstrar.
Miguel nunca mais quis conhecer outras pessoas depois que sua esposa faleceu, e sua vida permanecia assim, como uma festa sem graça e sem convidados.
Encheu-se de ficar sentado na poltrona, encheu-se da música de sempre e se encheu das mesmas coisas que se enchia todos os dias, e sabia que no dia seguinte seria a mesma coisa. Caminhou até o banheiro e olhou-se no espelho.
Os pelos no rosto feito espinhos brancos, dos quais havia tirado a três dias atrás, já lixavam a palma da mão na caricia que fez a si mesmo. Sentiu as ondas da idade que sua pele produzia. Tentou sorrir para si mesmo, mas logo desistiu quando viu as rugas lhe darem uma aparência quase demoníaca. Miguel estava velho demais para sorrir, mas sabia que se chorasse o resultado seria ainda pior.
Chorar era algo que costumava fazer apenas quando se deitava após o jornal da TV para dormir. Chorava em silêncio. No escuro não poderia ver a monstruosidade de suas rugas, ainda que soubesse que estariam lá, para sempre, até o resto de sua vida, ou o que restava dela.
Queria raspar os pelos de sua face, mas teve preguiça, assim como de ir ao barbeiro na esquina de sua casa para cortar o cabelo amarelado que caia liso em sua testa.
Miguel não tinha amigos, era rabugento demais para frequentar o grupo da terceira idade. O mais próximo que tinha de ser um amigo era Félix, seu gato, cujo qual Margarida, numa manhã feliz de sábado, insistiu em adotar contra sua vontade.
Agora o gato também estava velho e sua esposa estava morta perdida em ossos cuja pele não resistiu em agrupar. Tirando o gato, seu filho Michel era o único de sua prole que ainda parecia se importar, mas ainda assim não chegava aos pés do gato Félix.
Sentou novamente na poltrona e teve a impressão de alguém tocar a campainha. Foi até a fresta formada pela cortina semi-aberta e ficou feliz de não ver ninguém no portão. Foi o primeiro sinal de alegria sentida no dia. Ninguém para incomodar, ninguém para falar. Aquele dia seria como ele gostava que fosse. Solitário com as rugas de sua fina pele, sem ter nada para fazer e sem ter que ouvir vozes. Ficaria ali sentado com as lembranças de Margarida. Levantaria ali apenas para abrir a porta quando seu melhor amigo voltasse novamente para casa. Felix miaria do lado de fora e ele abriria a porta. Então fariam o jantar, veriam o jornal da TV e iriam dormir.
Mas sua pele fina se arrepiava com a ideia de que Félix já era um gato velho e, assim, poderia não voltar. Daí então não haveria mais pelos soltos pela casa, não haveria mais arranhões e nem sequer quem mais alimentar pela manhã. Na verdade o gato nem desejava sair toda vez que o velho o colocava para fora, mas…
…Essa era a emoção de Miguel.
Aguardar os sinais da morte.