Providências…


Acordei ainda tonto. O dia estava nublado e abafado e, eu,  sem ter a mínima noção de como ou por onde começar a manhã.

Passei a mão pela cabeça espantando para o mais longe possível os meus sonhos depravados e a saudade que às vezes sinto daquilo que me faz tão mal.

Um pé de cada vez.

Escorri até o banheiro. Mijo primeiro ou molho o cabelo ensebado para penteá-lo?

Resolvi gotejar pela latrina e sentir o alívio da bexiga esvaziando. Suspirei. Agora o dia já havia começado. Abri a torneira do chuveiro e mandei embora a sujeira. Esfreguei o peito oleoso do suor noturno. Cheiro de mofo. Lavei tudo na mais humilde esperança de que pudesse lavar também minha alma; não funcionou.

Um bom salário gasto mês após mês com bebidas e livros. Dívidas se acumulando. O telefone que cortaram. O osso que ainda dói sem ter motivo aparente. O peito que já acostumou com as pontadas daquela antiga cirurgia… E nada de economias… Nada de um futuro seguro… Nada de responsabilidade. Ficaram somente as latas de cerveja vazias pelo chão e a promessa de uma nova ressaca.

 Enxuguei-me, enrolei a toalha no corpo e me lancei para a saída do banheiro… Não devia ter feito isso.

  Dedo…

  Batente…

  Sangue…

É sempre o mindinho do pé! Por quê?

Xinguei na mesma hora: “Caralho”. Manchei a casa toda de sangue. O vermelho com o cinza nublado do céu… Nem pra combinar… Ninguém pra me socorrer. Eu morria de dor e a culpa era do batente no mindinho. “Diga a meus amigos que os amo”, “Diga que sentirei saudades…”. Ok. Sem exageros.

Saí mancando e encapei o dedinho com esparadrapo. Vesti a meia e coloquei o tênis. Saí mancando para um dia que já começara mal… Já havia começado, afinal?

Uma puta-duma-vontade de ficar em casa; mas o dedo já havia batido no batente e eu estava fora de casa, nada mais poderia ser feito. Eu mancava pensando em quantos leões mataria dessa vez. Talvez pudesse usar minhas unhas enormes para isso. Eu os arranharia. Garras contra unhas. Furaria seus olhos. Usaria as unhas como navalhas e deceparia os animais como faca quente na manteiga… O dia já havia começado!

Tentaram pisar no meu pé. Mas como um ninja desviei, quase xinguei. Controlei-me. Na estação da Sé ninguém é de ninguém! No trabalho também não. Quando se passa o cartão de ponto, já tem que desviar das palavras que emergem da boca do chefe em forma de mil perguntas. “Vou providenciar” – Disse eu com os olhos serrados e voz entediada. “Vou providenciar”.

Sentei-me em minha cadeira, tiro o tênis do pé. Dói!

– O que fez aí:

– Bati o dedo no batente da porta logo cedo.

– Hummm. No mínimo você estava bem-louco.

Respirei fundo. Fui buscar um copo d’água, mas optei pelo café aguado do escritório.

Pensei em como me julgavam um bêbado, mas no dia em que eu beber cerveja as seis horas da manhã de uma terça-feira, eu mesmo me internarei! Conheço pessoas que tomam Vodka com Coca-Cola no café da manhã, mas não eu. Eu não. Não cheguei lá ainda, e nem seria nenhuma honra chegar.

   Sentei na cadeira novamente e mais uma vez tirei o tênis. “E agora quando meu pé começar a suar? Vai arder”… Preciso fazer alguma coisa. Algo para que meu dedo ferido não infeccione; não gangrene, não apodreça e não caia… Preciso fazer alguma coisa por ele antes que perca um membro… Preciso fazer algo… Vou providenciar… Vou providenciar.

– Sérgio Charro

**

Texto publicado por mim em 2009, mas como acho um texto bacana, resolvi dar uma simples editada e postar novamente! Recordar é viver!

Ósculos e Amplexos!

2 comentários em “Providências…

  1. Bem que eu estava reconhecendo…e pensei: “Será um Déjà vu?!” ou então: “Meu Deus! Esse texto saiu da minha imaginação!” Mas não! Eu não tenho uma mente tão brilhante como a sua…

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